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Acordou.

Sara levantou naquele fim de manhã como se seu corpo ainda resmungasse pesadamente. Sentia dores em todo corpo. Não sabia se eram sintomas da angústia, agora crônica, ou da idade que avançava a cada minuto inútil dos últimos tempos. Últimos? De certo não sabia identificar o quanto de sua vida desperdiçou fazendo seja lá qualquer coisa. Parecia que nada de marcante realmente se concretizara. Agora tinha 33 anos, e ao contrário de Brigit Jones não foi pedida em casamento nem uma única vez, nunquinha. E olha que não era lá uma mulher feia, nem gorda, nem costumava falar coisas despropositais. Era de fato uma mulher muito contida, detestava histerias femininas, aquelas vozes agudas irritantes, aqueles comportamentos teatrais que fingiam fragilidade numa asfixiante atmosfera sexual. Toda aquela ceninha que tanto atraia os homens era para ela uma bobagem. Como é que eles podiam cair nisso? Mais uma prova de que eles eram todos uns animais cegos pelos instintos, hipnotizados pelo cheiro de sexo fácil daqueles olhares 45º daquelas histéricas pseudocastas…
– Meu Deus! Estou ficando amarga -, pensou ela, enquanto notou que tais pensamentos matutinos a haviam feito escovar os dentes com força excessiva, mais uma vez. Teria que fazer uma restauração, mas só este pensamento que causava arrepios! Lembrava-se da profissão da histérica pseudocasta que arruinara sua vida amorosa tempos atrás. Vagabunda! E foi preparar um capuccino extra-forte para estragar de vez seus dentes.
Sentou-se pesadamente na cadeira ao lado da janela. Parecia que um mundo abalava a cadeira. Quando olhava pela janela, vendo o mundo acontecer lá fora, tentava imaginar o que todas aquelas pessoa faziam. Essa sempre foi sua brincadeira preferida de criança: tentar-se imaginar numa outra vida. Mas estes pensamentos agora a deprimiam. Parecia que todos, todos mesmo, estavam mais ocupados, trabalhando e se relacionando uns com os outros, e infinitamente mais felizes do que ela. – Que droga! – disse em voz alta, enquanto apertava com as pontas dos dedos o coração que lhe doía de forma aguda.
Ela não sabia dizer se era uma dor muscular, pois quando tocava com as pontas dos dedos na região podia sentir todos esses os músculos doloridos. Mas não fazia musculação há tempos para provocar uma inflamação muscular. Poderia ser o músculo cardíaco. Podia ser que caísse dura no chão da cozinha um dia desses enquanto tomava seu capuccino extra-forte. Quem será que lhe encontraria? Praticamente ninguém vinha visitar-lhe nos últimos tempos. Talvez sua mãe o fizesse, depois que ela não atendesse o telefone. Talvez ela lhe encontrasse suja daquele líquido marrom escuro da bebida, já fedendo. Essa imagem era ainda mais deprimente, e afastou o olhar que se dirigia ao nada longínquo para uma coisa mais prática: a pia, onde tinha deixado a louça que se acumulava de todas as mini-refeições da última semana.
Deitou no sofá da sala, pesadamente, deixando a louça pra outra hora. Incrível como só conseguia pensar em besteiras! Já não produzia há um bom tempo! Tinha 3 livros começados, pela metade, de que já não se lembrava do que tratavam. Teria que recomeça-los. Não conseguia escrever uma só linha do seu doutorado, que já estava com o prazo estourado. – Que droga! Que merda de vida! Como queria trabalhar mecanicamente, com as mãos, talvez… ser bordadeira ou algo do tipo. Pra não pensar, não precisa pensar…
Mas isso não era possível, uma vez que tinha escolhido a filosofia. Ela tinha que pensar; ela devia, categoricamente, pensar. E como não conseguia obedecer a este imperativo kantiano, concluiu que não tinha moral. Não que fosse amoral, mas só conseguia ser imoral. Consolando-se com este pensamento, entregou-se ao seu passatempo preferido dos últimos tempos: fantasiar o mal.
Estas fantasias eram bem específicas. Envolviam sempre os mesmos nomes e sobrenomes. Às vezes, os imaginava como vampiros, e se via enfiando estacas em seus corações… será que era por isso que sentia o seu coração dolorido? De fato, só ela sofria. Todos os demais envolvidos estavam felizes, sorridentes, gargalhantes, ricos… suspendeu a respiração, como fazia sempre. E quando essa imagem se transformava em algo insuportável, respirava, ou suspirava pesadamente.
Lembrou-se daquela música, “stuck in the moment”: “and you can’t get out of this…”. mas parecia-lhe que aquele momento nunca iria passar. Aqueles sentimentos iriam atormentá-la para sempre. De fato eles já duravam 6 meses. 6 meses de vida! Vida? Que vida?! Sobrevivera, apenas. Seu corpo, e olha lá… Emagrecera. Suas roupas pendiam como sacos. Tinha que colocar um cinto, no último buraco. Mas não conseguia ver isso como vantagem, já que não se sentia bela. Sentia apenas um nojo de si mesma. Nojo de ter sido desprezada, traída, trocada por outra mais jovem, histérica – isso precisa ser bem precisado. Uma histérica pseudocasta, cuja propaganda era espalhada pela amiga, pela amiguinha que de tão amiguinha parecia uma lésbica que só sabia digitar “AMOOOOO” nos posts que abria para todos verem, sob as fotos que colocava lá para “ela” ver. E ela viu como todos estavam felizes naquelas viagens de “negócios” dele, regadas a bebidas e comidas finas, corridas de kart e fins de semana na praia.
As estacas não eram suficientes! Definitivamente! A morte vinha rápido demais! O sofrimento tinha que ser prolongado. Aumentado substancialmente. Levantou-se e pegou o caderno de anotações artesanal que tinha ganhado de não se lembrava quem. Ele se tornara o diário de suas fantasias sórdidas. Isso porque não se parecia com um diário. Era grande, encardenado em espiral na parte de cima. Era só escrever e jogar a folha pra cima, como que para o universo, e recomeçar na de baixo, espaço em que realmente sentia que era o seu lugar: embaixo. – “Fazem 6 meses hoje…” – “Fazem?” ainda por cima estava ficando analfabeta! “Faz”, corrigiu. Mas este “em” traduzia o que sentia. Um prolongamento necessário. Os dias, meses, horas intermináveis se arrastavam, formando um “emmmmm” ensurdecedor, esmagador, deprimente.
– “Depressão”, devo estar com depressão. Ou ela está comigo e não me larga. Por isso a “dor no coração”? Que piegas! Seu corpo não podia ser tão piegas assim!

No consultório,

Deitou-se sobre o divã. Nunca havia usado antes o divã. “Antes”. Mas “agora”, “depois” do trauma fatídico do rompimento, não se sentia mais confortável em se sentar frente à Clara, encarando-a. Preferia largar seu corpo no divã e olhar pro nada no teto. Eram nesses raros momentos, em que se deitava no divã, que seu corpo relaxava. Relaxava, mas a dor continuava. Parecia aqueles momentos em que a dor latejante de uma ferida intensa amortecia de tanto latejar. Lembrava-se de sua avó, que confortava-a passando uma mistura de álcool e cânfora com o algodão sobre o machucado, que dizia: “Vai sarar, Sara, vai sarar…”. Como queria que sua avó estivesse viva… Como se sentia indefesa!
– Como se sente? – Clara perguntou. Certamente estava incomodada com o silêncio. Estranho como ela não se incomodava mais com o silêncio. Até se esquecera que estava lá, deitada calada. Às vezes sentia que a presença de Clara ali não era assim tão necessária. Ela só precisava daquele divã e daquele teto para se sentir bem. Nem precisava falar. Nem precisava de contato algum. Mas Clara estava desconfortável, senão não teria quebrado o silêncio perguntando como ela estava. É claro que ela sabia como ela estava! Será que esperava que milagrosamente declarasse que estava melhor? Que não necessitava mais de seus cuidados? Que ela operou um milagre psicoterápico? Ela não estava nem aí em aliviar a angústia que o silêncio despertava em Clara. Cada um com a sua angústia, e a dela tem sido o silêncio faz tempo, “fazem” tempos…
Suspirou, preparando-se com a descrição da semana que teria que dar. Que descrição? “Não fiz nada durante mais uma semana”, era isso que deveria dizer? Suspirou e, agressivamente, continuou em silêncio. E desta vez Clara agüentou, o tempo todo, seu silêncio.

O tempo acabou,

Disse. “É, realmente o tempo acabou”, pensou Sara. Ele está suspenso porque acabou. Nada de novo pode surgir. Acabou. Até ele, o senhor dos tempos, se apagou…”
Levantou-se, lançando um olhar de pôquer sobre Clara, e saiu, sem dizer nada.

Autora: Ana Paula Andrade
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